10.7.11

novo movimento


Marina Silva, no Globo:

"Criamos acúmulos que nos levaram a transformações na economia e nas políticas sociais. Talvez agora o acúmulo necessário seja na política. Senão, vamos perder as conquistas que já alcançamos."

28.11.10

além da dor


É uma observação comum a brasileiros a surpresa diante do valor conferido por outros povos a seus militares e policiais e da união em torno deles em momentos de crise. Com nosso histórico acumulado de arbítrio militar, inépcia estatal e desigualdade, não conhecemos o sentimento de identificação e confiança que ampara este fenômeno.

Armas não são em nenhuma circunstância algo para se desejar. O risco daquela união se dar em torno de projetos autoritários é bem conhecido por nós. Não faltou no Brasil quem respaldasse o arbítrio e a seletividade sociais de grande parte de nossa história. O alerta sobre as possibilidades de desvios e a lembrança da excepcionalidade do recurso à força é por isso sempre fundamental.

Mas ele não deve nos obstruir o discernimento para reconhecer quando algo diferente acontece. E o que aconteceu no Rio nos últimos dias foi decididamente diferente.

Ao contrário de outros momentos de crise da segurança pública na cidade, este encontrou um espírito coletivo de confiança na possibilidade de melhora. Os resultados sólidos obtidos pelas UPPs, combinados com uma tendência de queda nos índices criminais no estado como um todo, abriram caminho para esta percepção.

Encontrou também um contexto social distinto da paralisia excludente que sempre o marcou. No mesmo curso do Brasil, nos últimos anos o Rio reduziu a pobreza em 50%, viu a desigualdade encolher pela primeira vez em décadas e passou a expandir com nitidez as oportunidades de acesso à cidadania e aos mercados de empreendedorismo, trabalho e consumo.

Foram esses movimentos, quem sabe, que alimentaram a convicção de sermos capazes de mais, como sociedade e estado, que a semana revelou. Autoidentificação e autoconfiança lançando as bases para o desfecho diferente de agora.

O governador Sérgio Cabral tem se referido aos acontecimentos desses dias como a “união do estado de direito democrático”. Não é retórico ao dizer isso. Assistimos a uma demonstração emblemática de integração governamental na área da segurança pública há muito demandada no país. A ações policiais refletindo uma capacidade técnica e massa crítica sem dúvida inexistentes no passado. A uma presença das forças armadas bem dimensionada no seu caráter tópico e de suporte operativo. A operações vigorosas ocorridas com o mínimo de baixas, entre policiais, moradores e também criminosos. A meios de comunicação que não se furtaram a estar presentes nos locais das ações, cobrindo-as com a natureza espetacular que inevitavelmente envolvem, mas predominantemente sem perder o equilíbrio na defesa da legalidade na ação pública, e ajudando a promovê-la com seu testemunho. À chegada em regiões como a Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão definidas desta vez não como o combate a antros de bandidos, mas como a extensão a essas áreas da legalidade democrática, em benefício antes de tudo dos seus moradores. A uma sociedade civil e população com acúmulo e convergência suficientes para respaldar esses esforços.

O saldo é a sensação de avanço e de estarmos prontos que circula pela cidade agora. O reconhecimento da importância da ação policial, combinado com a convicção de que esta precisa acontecer dentro da lei. O esgotamento da ambiguidade e do glamour em torno de grupos criminosos, associado ao horizonte de garantia universal de cidadania e direitos. A visão comum de uma cidade única, integrada, com a extensão tardia do estado democrático a todo o seu território. A convicção da existência de legimitidade e de condições para que isso aconteça.

Nada disso é mérito de ninguém em particular: resulta sim de anos de aportes, aproximações e apendizados de parte a parte, amadurecimento compartilhado entre policiais de organizações diversas, gestores públicos, ativistas, especialistas, jornalistas e assim por diante. É importante saber disso não apenas para prevenir a soberba, mas para evitar a reiteração de críticas antigas apenas pelo hábito de fazê-las.

Sim, nada será resolvido magicamente apenas por conta de alguns dias bem sucedidos. Há muito por ser feito para o aprimoramento estrutural das polícias fluminenses, além do combate à corrupção e brutalidade no interior delas, para que possam chegar a oferecer no dia-a-dia e em todo o estado a confiança percebida agora. E por valiosos que forem os avanços na segurança, eles só serão completos quando combinados com a integração plena da cidade, social, urbana e econômica. Não vejo razões para duvidar que o Rio, como o Brasil, tem hoje a consciência clara de tudo isso.

Mas nada ajuda mais para que essas coisas possam acontecer do que a demonstração prática vivenciada esses dias da possibilidade dos órgãos públicos atuarem com articulação e eficiência e, mais importante no caso de agora, da existência de algo como uma boa polícia, competente, íntegra e capaz de êxito. O Rio sente e sabe hoje que está avançando e que pode continuar a fazê-lo. E isso - com tudo que haja ainda por ser feito - não pode ter o seu valor subestimado.

Não seria correto tratar as ações dos últimos dias como mais um capítulo da narrativa que envolveu a morte de 19 pessoas com a ocupação desatrosa do mesmo Complexo do Alemão em 2007. Não é justo com os policiais comunitários dedicados cotidianamente às UPPs em áreas diversas da cidade pretender equipará-los a uma “polícia de apartheid” ou a muros e isolamentos acústicos colocados nas fronteiras de favelas. Não contribui para a integração desejada ignorar os esforços na direção dela hoje existentes na cidade (PAC, UPP Social, Morar Carioca, para citar alguns exemplos entre ações diversas governamentais, da sociedade civil e do setor privado).

Momentos de mudança o são também pela exigência da capacidade de percebê-la e reposicionar-se para os passos seguintes diante dela. O jornal “O Globo” tem sido criticado por batizar em sua capa da última sexta-feira a operação na Vila Cruzeiro como o “Dia D da guerra contra o tráfico”. O triunfalismo e o extremismo bélico do paralelo de fato parecem excessivos, mesmo que os sentidos do marco de virada coletiva e da Normandia como território não-inimigo libertado não o sejam. Mas se for uma questão de metáfora, digamos então que cruzamos o Cabo da Boa Esperança. Há um oceano inteiro pela frente e muito ainda pode acontecer, mas sabemos agora que podemos chegar lá.

2.6.10

um rio


O Rio é uma cidade partida. O Rio é uma cidade de cidades misturadas. O Rio é uma cidade única em que as duas afirmações podem paradoxalmente conviver com o mesmo grau de verdade. Ou, para falar com Caetano Veloso, tomando emprestada uma descrição que ele propõe para o Brasil, "com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei, entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime".

O problema é que tendo sido sempre assim, o Rio se acostumou, e a cidade foi tomando a forma dessas divisões. A crença difusa de que a delícia e o sublime da cidade poderiam sobrepor-se a tudo permitiu conviver por tempo demais com desigualdades e descuidos intoleráveis. A multiplicação de fronteiras, embalada pelo declínio econômico e pela expansão das armas, impôs-se minando a vocação para o encontro. "Favela" e "asfalto" converteram-se na imagem síntese de uma cidade que tinha - tem - tudo para ser muito mais plural e bela do que isso.

Na última quarta-feira o AfroReggae inaugurou em Vigário Geral o Centro Cultural Waly Salomão. Batizado em homenagem ao poeta falecido em 2003 e que ao lado de Caetano e de Regina Casé esteve entre os padrinhos de primeira hora do grupo, o centro é fruto de quase uma década de construção, avançando um passo após o outro pelos meandros da captação de recursos e da mobilização de parceiros, desde o lançamento das fundações em 2002 (que precisaram ser profundas, por estarem, como todo o bairro, localizadas sobre uma área aterrada) até os quatro andares de hoje e a praça, também nova, que os circula. O resultado é um espaço de criação e produção artísticas que não deve nada a nenhum outro da cidade, em infraestrutura, equipamentos e excelência, e que passará a abrigar as atividades de música, teatro e dança do grupo e outras tantas - culturais e cidadãs - que certamente surgirão com os muitos encontros proporcionados pela nova casa.

Mas se já é inspirador por sua qualidade e pelo cotidiano que abrigará, o CCWS estimula também pelo que guarda de história e de sentidos. Foi este mesmo Vigário Geral, notabilizado pela chacina que o tempo não permite esquecer (e é bom que seja assim), que motivou Zuenir Ventura a cunhar a expressão "cidade partida", em um 1994 tão distante quanto presente na persistência dos dilemas vividos pelo Rio. De lá pra cá, a história foi contada cada vez mais por novos movimentos surgidos nas áreas da cidade em que estes dilemas se vivem de forma mais presente. Com vigor e originalidade admiráveis, grupos como o próprio AfroReggae, a CUFA, o Observatório de Favelas, o Nós do Morro - para exemplificar aqui com apenas os mais conhecidos, reunidos desde 2007 na aliança "Favela a Quatro" - surgiram e espalharam-se cidade afora, lançando pontes, abrindo canais de transformação e assumindo a responsabilidade de renovar forças e apontar caminhos diante da violência e da exclusão enraizadas.

Pouco a pouco, assumiram também o protagonismo em uma esfera pública que sempre lhes negou voz, mais ainda em primeira pessoa. Não é casual que o novo centro chegue quase ao mesmo tempo que a nova versão do "Cinco Vezes Favela", marco do cinema brasileiro na década de 60, que acaba de ganhar uma atualização, dirigida agora por jovens cineastas residentes em favelas. E não é exagero propor que nesses movimentos estão concentradas hoje a substância e a energia vitais para a reversão das divisões apontadas no início do texto. Recuperar a vocação do encontro para desfazer fronteiras. Vislumbrar um horizonte - e uma agenda pública - de integração, mais ainda do que de mistura.

Construído - ou conquistado - ao longo dos anos juntamente com essa história, o novo centro surge assim como um verdadeiro marco urbano de seu significado. Porque símbolos importam, e este é um símbolo que importa muito, um contraponto oportuno à Cidade da Música na demonstração do que a vitalidade criativa e associativa do Rio é capaz de produzir. É belo e estimulante que seja Vigário a recebê-lo, porque não poderia ser mais marcante a evidência da capacidade de recuperação da cidade mesmo diante dos seus reveses mais profundos.

Por isso é que os integrantes do AfroReggae gostam de dizer que este Centro Waly Salomão não é um centro cultural de Vigário Geral, mas um centro cultural da cidade do Rio de Janeiro, em Vigário Geral. Um espaço concebido e projetado para isso, pronto para receber os moradores de toda a cidade. E para assim projetar adiante o sentido de ambição coletiva que permitiu concretizá-lo: como todo bom espaço urbano e público pleno de significado, irradiando de sua história e de seu dia-a-dia a visão e os enlaces necessários para os passos adiante por cumprir em convívio e igualdade.

É dessa visão e das possibilidades de realizá-la que eles nos falam quando entregam o novo centro para o Rio. Como se dissessem, pela via da expressão cultural que ele abrigará: a gente quer comida, diversão, arte, direitos e oportunidades - cidade inteira, e não pela metade. Ou, em uma conversão de palavras/sentidos que Waly haveria de aprovar, cidade afinal repartida, compartilhada.


17.5.10

depois da pacificação


Na adoção de políticas públicas, como em quase tudo na vida, a definição correta de objetivos é fator chave para o sucesso ou fracasso.

O Rio de Janeiro passou anos sem conseguir decidir os seus em relação às favelas, e especialmente à insegurança e ao domínio das armas dentro delas. Opunham-se de forma irremediável a demofobia secular incapaz de enxergar cidadania em áreas pobres e preocupada exclusivamente em contê-las, e a idealização das comunidades tomando a presença da lei estatal como intrusa ou ameaçadora naquele contexto. Tempos do "favela como caso de polícia" rebatido pelo "polícia para quem precisa de polícia".

O significado das UPPs é antes de tudo o de um formidável passo à frente em relação a este impasse. Sua premissa fundamental é tão óbvia quanto libertadora para os dilemas cariocas: não se trata de prover segurança contra as favelas, mas para elas e seus moradores, como em todas as áreas da cidade. A partir daí seguem-se os desdobramentos implícitos que vão aos poucos ganhando a hegemonia no imaginário comum: favelas, evidentemente, fazem parte do conjunto "áreas da cidade" e por isso devem merecer a atenção prioritária do poder público com essa perspectiva. Sendo assim, o objetivo primordial da política de segurança precisa ser a garantia do controle do território pelo Estado democrático, com a extensão universal das liberdades e direitos que decorrem daí. E para isso, a presença de uma polícia capaz, confiável e cidadã é ponto de partida, como condição mesmo para que outros mecanismos de desenvolvimento e inclusão se estabeleçam e proliferem.

Simples assim, mas é desses simples que tomam anos para amadurecer. Não é, claro, a primeira vez que tudo isso é proposto ou mesmo tentado. Mas é a primeira vez que alcança a sustentação necessária para avançar: na Zona Sul como nos morros, nas polícias como na sociedade civil, na mídia como na opinião pública. Objetivos redefinidos. E com eles salta aos olhos, de forma para muitos surpreendente, o quanto a força inexpugnável das redes de traficantes e milicianos armados nunca esteve de fato no seu poder de fogo, mas sim na lacuna criada pela nossa própria impossibilidade de definir um rumo compartilhado. Resta portanto, do ponto de vista da segurança pública, guardar a direção e mantê-la firme.

Mas o ponto de vista da segurança pública é, neste caso, naturalmente apenas mais um. "Ponto de partida", como indicado acima, para o ciclo renovado de desenvolvimento e inclusão por ter em vista. Uma só cidade. A boa nova é que são muitos os indícios de que esta visão vai também impondo-se, resultando da mesma convergência virtuosa que permitiu o acordo em torno dos objetivos da pacificação.

É notável, e mais ainda no cenário de fragmentação que historicamente caracterizou a vida pública carioca, a sintonia presente entre setores variados dos três níveis de governo, associações e lideranças privadas, vozes acadêmicas e da sociedade civil e organizações e moradores das comunidades em foco em relação às metas comuns de eliminação do arbítrio criminoso no Rio e integração plena das áreas libertadas ao tecido da cidade. Há, é claro, espaço nisso para críticas, dúvidas, ressalvas e acompanhamento atento, como é natural e positivo. Mas o que sobressai é mais uma vez a definição compartilhada de objetivos, permitindo vislumbrar uma soma igualmente positiva de esforços na direção dos passos seguintes. Vão aqui, como exemplo, alguns links ilustrando tanto a constatação como a expectativa.

Talvez o principal aspecto por atentar agora seja que movimentos assim levam tempo. Para usar o termo em voga, a pacificação é marco que inverte o sentido da roda. Insegurança e violência minam coesão e ação coletiva, segurança e paz fazem o contrário. Mas aqui vale o lugar comum de que 30 anos (ou mais de 100, para quem considera o histórico completo de abandono das favelas cariocas pela cidade/sociedade formal) girando errado não se desfazem em dois tempos.

Reintegrados os territórios, é preciso caminhar na dissolução das muitas dimensões de ilegalidade ou informalidade (relacionais, urbanísticas, econômicas) que marcam o seu cotidiano - um desafio, de resto, de toda a cidade, ainda que com graus e conteúdos específicos variáveis. Algo por fazer de forma gradual e com sensibilidade às particularidades de cada local, mas necessário. É preciso fazer a lição de casa, de novo tão óbvia quanto renovadora, de universalizar o acesso aos serviços urbanos e sociais básicos (infra-estrutura, educação, saúde, trabalho e renda). Encontrar os caminhos para tornar dinâmico e sustentável o desenvolvimento deflagrado.

Tudo isso tampouco é novidade, e talvez possa também ser já incluído entre os consensos. Mas é tarefa para muito caminhar, diálogos e formulação, tentativas e aprendizados. Depois da pacificação, o desafio é portanto manter o impulso da roda para impedir que a resistência natural dos fatores de exclusão e degradação que seguem existindo volte a impor sua inércia corrosiva no percurso.

O que leva a um último, mas certamente não menos importante, item para a agenda. Processos duradouros de avanço público pressupõem instâncias eficazes de interlocução também compartilhadas. Como é natural, durante anos as áreas pobres do Rio viram também seus espaços associativos e sua interface com o poder público desgastarem-se na mesma medida do isolamento imposto pelas armas. Associações e grupos locais foram capturados ou fragilizados pelo tráfico ou por milícias, as oportunidades de colaboração com outros segmentos sociais foram limitadas pelas fronteiras criadas, a relação com o poder público deteriorou-se ainda mais em clientelismo - quando não em extorsão e intimidação determinadas pela presença cotidiana da face corrompida do Estado. Isso tampouco se desfaz da noite para o dia, e sem que seja desfeito será difícil contar com lastro suficiente para eliminar de vez o risco de nova inversão negativa da roda.

Recriar espaços vibrantes e qualificados de participação e cooperação será então componente igualmente decisivo para o que há por vir. Multiplicação de oportunidades de convívio diverso nas áreas em foco (via cultura, esporte, lazer, além de participação cidadã), associações e redes locais renovados, conselhos e novas formas criativas para a interação com o poder público e a colaboração com outros segmentos sociais, recuperação dos pontos de contato com os parlamentos (Câmara Municipal e Assembléia Legislativa) e inovação na ação dos meios de comunicação em relação a essas áreas (e vice-versa) são partes integrantes possíveis deste esforço. Elas e outras que venham a ser criadas no caminho. É daí, quem sabe, que pode vir a superação definitiva dos paternalismos, desconfianças e incompreensões que tradicionalmente comprometem as vias de identidade e encontros na cidade partida, e é por isso que o tópico tanto fecha quanto impulsiona a pauta.

Avançamos notavelmente nos últimos tempos do "quem precisa de polícia" para o "de que polícia precisamos". E para o entendimento de que todos precisamos de boa polícia - a mesma para todos. Não é pouco. Agora é tempo de alcançar o que precisamos além dela. É bem mais, certamente, mas o caminho está positivamente aberto, e são muitos os sinais de que pela primeira vez em muito tempo há boas razões para apostar nele.

23.4.10

arte do chá


Paulo Leminski:

Ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio comigo
ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo

20.4.10

manaus - altamira


Euclides da Cunha em carta a Domício da Gama, durante visita a Manaus em 1905:

"Mal tenho tempo de escrever-te. Manaus, onde eu julgava ficar tão poucos dias e onde estacamos de improviso, a braços com os maiores empecilhos na aquisição de meios de transporte, é hoje para mim uma Capuá abrasadora, trabalhosa, que me devora energias, menos pelo excesso de felicidade que pela sobrecarga de preocupações. Imagina esta situação de parada forçada e inaturável na minha engenharia de César. Quis chegar, observar e voltar, mas cheguei e parei. Estaquei à entrada de meu misterioso deserto do Purus; e, para maior infelicidade, depois de caminhar algumas três milhas, caí na vulgaridade de uma grande cidade estritamente comercial de aviadores solertes, zangões vertiginosos e ingleses de sapatos brancos. Comercial e insuportável. O crescimento abrupto levantou-se de chofre fazendo que trouxesse, aqui, ali, salteadamente entre as roupagens civilizadoras, os restos das tangas esfiapadas dos tapuias. Cidade meio caipira, meio européia, onde o tejupar se achata ao lado de palácios e o cosmopolitismo exagerado põe ao lado do Yankee espigado... o seringueiro achamboado, a impressão que ela os incute é a de uma maloca transformada em Gand.

Imagina como atravesso estes dias agravados pela canícula de 30 graus à sombra e à noite... na constância formidável de uma estufa. Daí a moléstia, em que pese à minha organização de salamandra. Escrevo-te com febre, uma febre monótona em que o termômetro se arrasta traiçoeiramente, com uma lentidão medrosa, a 37 e 30 graus - resolvi diariamente solicitar a aliança perigosa de um médico. Do teu

Euclides"

Neste dia de leilão, faz pensar na cruzada do então ministro Roberto Mangabeira Unger por sua definição de desenvolvimento da Amazônia, última palavra do governo sobre o assunto. E em Belo Monte, claro, com sua energia dirigida às indústrias de alumínio e siderurgia, na mesma Altamira prometida de Bye, Bye, Brasil. Aço como borracha.

15.4.10

resiliente demais


O conceito do momento em política urbana é o de "resiliência". Em tempos de aquecimento global e desastres naturais, já não basta ser sustentável, é preciso ser capaz de assimilar golpes e continuar funcionando a despeito de quaisquer eventos. Talvez não exista cidade mais naturalmente resiliente do que o Rio de Janeiro.

Nada abala o Rio: chuvas com centenas de mortes, carros-bomba em avenidas, tiroteios e execuções diversos, quedas de serviços básicos, águas poluídas, extorsões, corrupções e incivilidades cotidianas. Para todos os casos, a cidade conhece bem o ritual a cumprir: expressar indignação, identificar culpados, exigir reações, adaptar-se às novas restrições e seguir em frente. Treino de séculos (como o subdesenvolvimento de Nelson Rodrigues), passadas as nuvens aqui estamos a completar o ciclo mais uma vez.

Enquanto isso, a cidade se aproxima de celebrar uma década sem um plano diretor. Vai ficando sozinha, já que o Estatuto da Cidade previu em 2001 a obrigação legal para que todos os municípios brasileiros com mais de 20.000 habitantes tenham um plano, e desde então centenas de cidades do país se lançaram à tarefa. O plano existente do Rio data de 1992, apontando para 10 anos à frente, e deveria portanto ter sido renovado em 2002. A história impressiona: em 2001, a Secretaria Municipal de Urbanismo deu início ao que deveria ser a elaboração do novo plano. Os relatos do desenrolar a partir daí no âmbito da Prefeitura - nas páginas 8 e 9 deste relatório aqui - e da Câmara Municipal - tabela sintética aqui - poderiam ser lidos como peças de humor sobre a capacidade de burocracias públicas sem rumo produzirem vento - e relatórios de tempos em tempos. Agora, 9 anos, 3 mandatos municipais, 5 comissões especiais e 4 versões de projetos depois, a informação mais recente é que o novo plano "deverá ser votado no primeiro semestre". Mas o debate se atualiza entre a defesa de mais tempo para a elaboração de um plano qualificado e a preferência por aprovar logo a versão insatisfatória disponível, enquanto a presidência da Câmara de Vereadores celebra novo convênio com a Escola Nacional de Saúde Pública para, entre outras coisas, "colaborar na discussão do plano diretor". Notícias dos próximos capítulos, com fé em Deus, pelo site da Câmara (poderia também ser pelo twitter do Plano, mas este parou de ser atualizado em janeiro).

O contraste entre a perplexidade recorrente com os fatos do dia e a novela legislativa fala por si. Mas ainda assim não é fácil decidir se o mais impressionante é a própria novela, ou o fato dela ter podido transcorrer em todo esse período sem jamais chegar a despertar qualquer interesse público relevante.

Seja como for, vale a observação. Houvesse um plano - na forma de um plano diretor propriamente dito ou, mais modestamente, de políticas e metas governamentais explícitos - e seria o caso de avaliar as águas da semana passada à luz dos rumos previstos. Situá-las no contexto das regiões que deveriam expandir-se e das que não. Cotejá-las com as ocupações informais por urbanizar ou remover - em função do risco, de razões ambientais ou da possibilidade de oferta de condições melhores. Identificar opções nas áreas de interesse social destinadas à população de baixa renda. Conciliar as propostas com os programas de habitação, transportes e promoção de direitos correspondentes. Discutir ajustes com base nisso e nos mapas, dados e informações objetivas relacionados. Processá-los em foros de interlocução pública legitimados (Câmara Municipal, conselhos, redes associativas).

Não havendo - plano ou, mais modestamente ainda, pelo menos esses foros - fica mesmo difícil ir além da indignação difusa, do prende/não-prende, ocupa/não-ocupa, remove/não-remove de sempre, do jornalismo de imagens espetaculares e do teatro das respostas públicas simbólicas. Expostos todos os inconformismos, escritos todos os artigos, feitas todas as declarações, o que fica são 2 decretos - 1 municipal e 1 estadual - atualizando critérios e locais para a remoção de moradores instalados em áreas de risco (responsáveis maiores que são, na perspectiva dos 2 governos, por todo o ocorrido) e um compromisso vago da Prefeitura com a desobstrução tardia de ralos e galerias. Nada sobre as razões para a seleção desses locais ou dos destinos dos seus moradores, outras ações de longo curso ou a conexão disso tudo com o plano geral de desenvolvimento da cidade. Colocamos fita isolante, damos uma mão de tinta e vamos adiante.

Não faltarão, é claro, alguns textos como esse - além desse próprio - apontando o buraco e pedindo estratégia. Mas eles são parte do rito, também bem conhecida. A parte final, enquanto o Rio não for capaz de desnaturalizar tudo com que aprendeu a conviver e somar-se ao Brasil na absorção gradual dos bons hábitos do planejamento, da explicitação de rumos e da canalização de energias para a ação pública consequente. Fica, quem sabe, o desafio inicial de um pouco menos de resiliência.

9.4.10

crack/cocaína


De volta ao tema das drogas, é pelo menos irônico que enquanto os Estados Unidos discutem a revisão da sua legislação sobre crack no sentido da redução das penas associadas ao seu tráfico e consumo, o Brasil o faça na direção da ampliação delas.

Por lá, a legislação em vigor foi adotada na década de 80, em resposta à expansão do consumo de crack nas grandes cidades do país e à disseminação de informações de que ele seria muito mais aditivo do que outras drogas, provocaria comportamentos violentos, causaria danos sem paralelo à saúde dos seus usuários e aos filhos de gestantes que o consomem, levando ao abandono de crianças e ao risco de criação de uma geração de "crack babies" espalhados pelo país. Os medos coletivos despertados e o tratamento dado pela mídia ao assunto levaram à percepção do crack como principal responsável pelo crescimento da criminalidade urbana também em curso, e à aprovação em 1986 e 1988 de uma distinção severa entre os tratamentos legais ao crack e à cocaína em pó: a venda ou a mera posse de 5g de crack impõem hoje nos EUA uma pena mínima de 5 anos de prisão, enquanto são necessárias 500g vendidas para provocar a mesma pena no caso da cocaína em pó e a posse desta ou de qualquer outra droga implica uma pena máxima de 1 ano. Por aqui, a vivência, 25 anos depois, do mesmo fenômeno experimentado pelos EUA naquele período nos conduz ao mesmo caminho, com a tramitação no Congresso de projetos do deputado Paulo Pimenta (PT-RS) e do senador Sérgio Zambiasi (PTB-RS) propondo a adoção de penas por tráfico de crack de 2/3 a 2 vezes maiores em relação a outras drogas.

Estamos sempre aprendendo quando se trata de quebrar tabus e explorar assuntos até então interditados. Fiz o teste: indagando casualmente alguns conhecidos, muitos não souberam dizer que crack e cocaína em pó são formas diferentes da mesma substância, e todos acreditavam que o crack é em si bastante mais perigoso e letal do que a forma em pó. Vale portanto o esclarecimento prévio: quando falamos em crack, estamos falando rigorosamente da mesma substância ativa contida na cocaína em pó. Daí usar-se em inglês, com mais precisão, os termos "crack cocaine" e "powder cocaine". A sensação e os danos provocados à saúde pelas 2 variantes são assim os mesmos. As diferenças estão no tempo de absorção, na duração da sensação e no preço. Tragada, a cocaína presente no crack atinge a corrente sanguínea e o cérebro mais rápido do que quando inalada, o que torna seus efeitos praticamente instantâneos, enquanto a versão em pó leva até 30 minutos para produzi-los. Por outro lado, a permanência desses efeitos é bastante menor no caso do crack. E por conter menos cocaína na sua composição, o crack é também bem mais barato.

Tudo isso se aprende verificando as informações disponíveis nos sites de instituições de pesquisa dedicadas ao assunto: aqui os exemplos da Escola Paulista de Medicina, da UNIAD e da Drug Policy Alliance, nos EUA. Daí para frente é lidar com as hipóteses de que o crack seja necessariamente mais aditivo, mais devastador ou mais associado à prática de violência, a ponto de justificar a distinção no tratamento legal. Nova pesquisa e descobre-se que todas elas são, para ser prudente, pelo menos controversas.

É justamente isso que está em questão hoje nos EUA. Duas décadas depois da aprovação da legislação em vigor, muitas das evidências científicas acumuladas refutam essas suposições, e indicam que o tratamento penal mais severo ao crack serviu apenas para reforçar a atuação seletiva do sistema de justiça sobre negros pobres, por serem estes os varejistas preferenciais do crack e seus consumidores mais visíveis (embora não, ao menos por lá, a maioria deles). A diferença essencial não seria assim farmacológica, mas econômica. O menor preço e a venda fragmentada ampliam as oportunidades de acesso à droga e expõem a ela um universo de pessoas mais vulnerável e com menos meios de proteção e recuperação - em termos sociais, médicos e legais. E colocam em movimento a reiteração de engrenagens discriminatórias bem conhecidas por todos.

Ainda em 2006, a American Civil Liberties Union cumpriu o papel de fazer o balanço e reunir essas evidências, além de ecoar o seu acolhimento por sucessivas instâncias judiciais e políticas do país. Este relatório faz o ponto de forma notável, elencando dados e fontes, enquanto esta carta de apoio à revisão da legislação sintetiza seu conteúdo. Valem a leitura. Bem além deles, a avaliação é respaldada hoje por um número crescente de vozes respeitáveis (valendo entre elas o exemplo emblemático deste editorial recente do New York Times, referindo-se à associação do crack a maior adição ou violência como "mitos" e definindo a distinção como "científica e moralmente indefensável"), e foi isso que levou o Senado norte-americano a aprovar por unanimidade no último dia 17 a redução de 100:1 para 18:1 da disparidade no tratamento entre as 2 formas da droga. As organizações dedicadas ao tema mantém a defesa da eliminação plena da diferenciação, mas saúdam o avanço.

Acompanhar a história ajuda a não repeti-la, e abordagens comparativas permitem aproveitar acertos e descartar equívocos. Quando se lê os relatos, a semelhança entre a história norte-americana dos anos 80 e a nossa de agora é realmente impressionante. Tanto, talvez, quanto os 180 graus de diferença nas rotas atuais das sociedades e parlamentos dos 2 países. Será que não há como escapar de cumprir os mesmos 20 anos de desmandos punitivos para chegar às mesmas conclusões a que chegam eles agora?

A história é antiga, mas vale também a visita a essa passagem de John Merriman em "Uma História da Europa Moderna", sobre os dramas sociais do continente na segunda metade do séc. XIX:

"O alcoolismo estava devastando muitos países na Europa. Na Inglaterra, a "bebedeira habitual" de trabalhadores com cerveja preocupava reformistas. Um pesquisador da época invocou que não era incomum para muitos trabalhadores gastar um quarto dos seus salários em bebida. O crescimento dramático da produção de vinho na França, Itália, Espanha e Portugal inundou os mercados, reduzindo significativamente seu preço. Em partes da França, o consumo médio de vinho por pessoa (e portanto a taxa para adultos deveria ser ainda maior) era de mais de 227 litros por ano, sem falar em cerveja, brandies e absinto, uma bebida com gosto de alcaçuz e feita de anis ou outras ervas, que é altamente aditiva. [...] Movimentos franceses em favor do abstencionismo foram varridos do mapa como diques frágeis pela torrente de bebidas. Nacionalistas, preocupados com as quedas na taxa de natalidade, somaram-se a alguns médicos e reformistas no alerta de que a França corria o risco de "degeneração racial" uma vez que a sua população parasse de reproduzir-se em função da devastação pelo alcoolismo. Somente mobilizando-se em torno de valores nacionalistas o país poderia, argumentavam eles, evitar o colapso total. Na Inglaterra, os movimentos abstencionistas começaram mais cedo e foram bastante mais fortes do que na França, e muito mais ligados às igrejas, do mesmo modo que na Suécia, onde em 1909 sociedades de abstinência tinham quase meio milhão de integrantes, que assumiam compromissos de parar completamente de beber."

A Inglaterra daquela época criou, além de serviços religiosos, "casas de trabalho" para o abrigo compulsório de pobres espalhados por suas cidades, com condições deliberadamente rígidas e precárias. Os Estados Unidos do final do século XX criaram um sistema prisional de largo alcance e sofisticadamente seletivo, que mantém hoje atrás das grades 1% de sua população total, 1 em cada 36 hispânicos e 1 em cada 15 negros, a grande maioria por delitos de drogas. O Brasil de hoje já segue este segundo caminho, conforme demonstram os estudos disponíveis sobre a aplicação da legislação de drogas em vigor no país, e flerta perigosamente com o primeiro, como sugerem relatos recentes vindos de São Paulo e de outras "cracolândias" pelo país.

Nós vivemos hoje, sim, uma epidemia de crack no Brasil e isso é um problema sério. Mas uma observação do assunto para além das informações mais apressadas indica que tudo que não precisamos diante dele é de mais paranóia. Além de atentar para as armadilhas discriminatórias contidas na hipervisibilidade social do fenômeno, a opção pela sobriedade sugere que também aqui o melhor caminho pode não se distanciar tanto daquele recomendável para outras drogas. Aumentar a dose de ciência envolvida nos diagnósticos e soluções. Reconhecer características e males com sobriedade e comunicá-los sem mistificações. Livrar-se da tentação de respostas punitivas rápidas, atraentes e ineficazes, cujos únicos efeitos visíveis são o reforço de marginalizações e o aumento dos incentivos econômicos ao mercado ilegal, com seus subprodutos em violência e corrupção. Criar alternativas lícitas e publicamente controladas de acesso às drogas por parte ao menos dos dependentes crônicos, como forma de minar o poder deste mesmo mercado ilegal. Expandir políticas de prevenção baseadas na difusão de informações com transparência e honestidade, livres das sombras e da desconfiança causadas pela interdição do assunto. Multiplicar os meios de acolhimento e tratamento às vítimas de dependência, sobretudo enquanto não formos capazes de produzir uma sociedade apta a gerá-las em menor quantidade.

4.4.10

páscoa


Do também recém-lançado (ou rebatizado) e também ótimo Maré de Notícias:

"O Movimento Moleque - movimento de mães pelos direitos dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no sistema Degase do Rio - continua a apoiar famílias que enfrentam essa questão. O grupo foi fundado por Mônica Cunha e Ruth Sales, quando ambas lutavam pelos direitos dos seus respectivos filhos em 2003. De lá pra cá, Mônica perdeu o filho com 20 anos, morto por policiais. O filho de Ruth, por sua vez, está casado e hoje trabalha numa empresa de informática. "Nosso objetivo é fazer com que os familiares tenham consciência do problema e entendam o que acontece com seus filhos", explica Mônica. O grupo está sem parceiro no momento. Quem quiser entrar em contato, deve ligar para 8142-5574 ou enviar e-mail: monicasuzana@yahoo.com.br."

Mais informações sobre o movimento aqui.

1.4.10

completamente enganada


Fabrício Corsaletti, no ótimo recém-lançado "Esquimó":

você me olha
como se eu fosse um coveiro
do século XIX
se eu pudesse provar
que sou um coveiro do século XIX
você acreditaria que sou um poeta
não passa pela sua cabeça
que ainda existem coveiros
e cemitérios
e que os mortos continuam mortos
e que os vivos estão quase lá
você não suportaria
saber que sou um coveiro
do século XXI
assim como se irritou
quando entendeu
que estava diante de um poeta

29.3.10

desrazão


Primeiro foi o frisson em torno do postulado do "Nudge" de Richard Thaler e Cass Sunstein, logo após a eclosão da crise econômica nos Estados Unidos e a posse de Barack Obama. O termo em inglês significa algo como "cutucar, empurrar delicadamente" e os dois professores da Universidade de Chicago apóiam-se nas observações da economia comportamental para propor a adoção pelo Estado de políticas que ajudem as pessoas a tomar as melhores decisões para si, levando em conta as nossas tendências à irracionalidade. Tornar automática a contratação pelas empresas de planos de previdência privada para os seus funcionários, reservando a eles a opção posterior de deixá-los ou de ajustar a sua contribuição, em lugar de deixar a cada um a iniciativa de buscar um plano para si. Informar aos compradores de novos carros a projeção dos custos com gasolina ao longo da vida útil do veículo. Incluir frutas nas merendas escolares para estimular hábitos saudáveis de alimentação. E assim por diante: prevenir pela ação do Estado os descuidos que a experiência indica que as pessoas tendem a fazer, sem chegar a colidir com o princípio da autonomia individual. Não por acaso os próprios autores definiram a doutrina como um "paternalismo liberal" e a ideia ganhou evidência nos EUA de Obama e da enxurrada de hipotecas e derivativos sem lastro.

O mesmo momento alimentou a onda de visibilidade para estudos destinados a revelar os múltiplos descaminhos pelos quais as decisões humanas afastam-se do pressuposto clássico da racionalidade. Jonah Lehrer e seu "How We Decide", propondo-se a explorar em bases neurológicas (isto é, incluindo aí o balanço disponível da observação empírica das formas pelas quais o cérebro trabalha enquanto tomamos decisões) os múltiplos fatores emocionais e instintivos que compartilham com a deliberação racional a responsabilidade por nossos atos. Neurobiólogos reunindo indícios da habilidade de parasitas de manipular o nosso comportamento, como no caso do toxoplasma, protozoário capaz de incidir sobre os circuitos neurais de seus portadores de modo a torná-los mais impulsivos, resultando por exemplo em riscos de envolvimento em acidentes automobilísticos 3 a 4 vezes maiores do que o normal (Robert Sapolsky explica a história inteira em excelente entrevista aqui). Malcolm Gladwell e seu "Blink", mapeando as situações cotidianas em que juízos são formados e escolhas feitas em um piscar de olhos, sem nada do processo de reunião de informações e análise de alternativas habitualmente associado à razão. Geneticistas usando com cada vez mais frequência a expressão "fomos programados para" de forma a expor comportamentos a que a herança genética nos condicionaria por default.

Agora é a vez da maré alcançar por aqui as decisões políticas. Em artigo na Folha semana passada, Hélio Schwartsman comenta os livros "The Political Brain" e "The Political Mind", lançados nos EUA respectivamente em 2007 e 2008. Como indica a semelhança dos títulos, ambos seguem o mesmo caminho de aplicar aos processos políticos e eleitorais o instrumental da neurociência empregado pelos estudos acima, para buscar demonstrar como também os juízos políticos são condicionados por emoções e estímulos inconscientes, gravados em nossas estruturas neuronais, em proporção muito maior do que gostaria o nosso ideal de livre arbítrio. Schwartsman vai tão longe quanto indagar se diante disso a ideia de democracia continuaria a fazer sentido (embora para concluir que sim).

A crença na razão humana decididamente já teve dias melhores. Não que ela esteja propriamente em xeque: todos os exemplos acima são, afinal de contas, esforços racionais para mapear e responder à ausência dela. Mas pelo andar da carruagem, nossa confiança na espécie - ou pelo menos no "homo economicus", craque em atuar com eficiência - não há de recuperar-se tão cedo. E tudo indica que neurociência e genética apenas começaram a mobilizar seu arsenal para nos convencer de que há muito mais conexões entre o indivíduo e suas atitudes do que sonhou a nossa vã filosofia (e mesmo a nossa não tão inocente psicologia).

24.3.10

drogas


O descongelamento do debate sobre drogas é uma das melhores novidades na arena pública brasileira recente. Faz um bem imenso que o assunto possa ser discutido sem a censura prévia do tabu, e que a razão possa afinal incluir-se entre os elementos envolvidos na conversa.

Com a abertura do debate, multiplicam-se as vozes. Fernando Henrique Cardoso, Ernesto Zedillo, César Gaviria e as comissões latinoamericana e brasileira sobre drogas e democracia, chamando a atenção para o fracasso da guerra às drogas. Ethan Nadelmann e sua Drug Policy Alliance, demonstrando as incongruências presentes na construção histórica das políticas sobre drogas. Jack Cole, ex-detetive especializado em drogas da polícia de Nova Jersey, e sua Law Enforcement Against Prohibition, expondo números e resultados da proibição. John Grieve, ex-comandante da unidade de inteligência criminal da Scotland Yard, e suas 10 Razões para Legalizar as Drogas. Organizações da área traçando alternativas de regulação legal para as diferentes drogas. O Ministério da Justiça apoiando o mapeamento dos padrões de aplicação da lei de drogas no Brasil. Grupos brasileiros como o Growroom, o Desentorpecendo a Razão e a Marcha da Maconha demonstrando muito mais consistência e lucidez do que gostariam os críticos que tentam proibi-los. Veículos tão diversos como a The Economist e o Le Monde Diplomatique repercutindo esses movimentos. E assim por diante, com cada vez mais agentes entrando em cena e mais links aqui.

Vale a pena dedicar atenção a eles, no mínimo pelo gosto da exploração de um conjunto de informações muito mais amplo do que o revelado pelo senso comum sobre o tema. De forma resumida, as evidências e argumentos reunidos neste esforço convergem para três observações principais.

A primeira: o que pauta a nossa atitude coletiva em relação às drogas é historicamente muito mais a maneira como elas são socialmente percebidas do que os riscos associados a elas. Preconceitos e tensões entre classes ou grupos sociais importam mais do que evidências científicas (reproduzindo, de resto, um viés bem conhecido das políticas criminais em geral). Assim é que, por exemplo, ópio, maconha e cocaína foram utilizados cotidiana e mesmo clinicamente nos Estados Unidos até o início do século 20, até que a percepção do seu consumo por parte de imigrantes chineses e mexicanos e de negros - e os medos associados a isso - levaram à sua proibição. Assim é que, por outro lado, o consumo de álcool e tabaco, produzidos industrialmente por cidadãos respeitáveis, pôde ao mesmo tempo ser estimulado - inclusive por seus supostos efeitos benéficos, retratados na publicidade relacionada a eles. Ou que hoje antidepressivos, estimulantes, energéticos e fortificantes diversos tornam-se cada vez mais onipresentes, em pleno apogeu da estratégia de "guerra às drogas". Cada um com seus vícios, medos e manias: mas em função deles a linha mestra do tratamento público às drogas foi sempre dada pelo lugar social de quem produz e quem consome cada uma delas, bem antes de uma análise objetiva de suas faculdades.

A segunda: é preciso retomar a questão dos limites do direito do Estado e da sociedade a controlar hábitos privados. Não é o argumento mais forte no front do debate público atual, mas mereceria mais atenção. Porque se o fundamento é a proteção do indivíduo contra um hábito que pode lhe fazer mal, então seria preciso admitir a possibilidade de amanhã proibirmos ou limitarmos legalmente o consumo individual de açúcares e gorduras, além do próprio tabaco e do álcool. Se o que importa é o risco indireto do consumo vir a causar danos a terceiros, então parece óbvio que um consumidor eventual de vinho deveria ter o mesmo tratamento de um consumidor eventual de maconha. Os paralelos poderiam seguir (incluindo mais uma vez o universo dos estimulantes - que "te dão asas" -, anabolizantes e drogas terapêuticas em geral), e seu cruzamento com a perspectiva histórica apontada acima dá o que ponderar. Não existe razão objetiva para que os termos "enólogo", "cervejeiro", "cocalero" e "maconheiro" tenham as conotações distintas que têm. É uma questão de justiça e de igualdade perante a lei compatibilizar os tratamentos a estes diferentes consumidores.

A terceira: abuso de drogas é ruim, a guerra às drogas é pior. A proibição, gerando o mercado ilegal e a violência, corrupção e marginalização cotidianas associadas a ele, é responsável por muito mais danos e vidas perdidas do que o consumo que ela visa - sem sucesso - combater. É preciso ter claro: nenhuma das vozes citadas questiona que drogas sejam potencialmente danosas ou defende a sua legalização pura e simples, sem controles e políticas públicas associados. O que está em questão é a coerência, a eficácia e os efeitos colaterais das estratégias adotadas para lidar com elas. Passadas mais de 4 décadas de políticas baseadas na proibição e na meta de erradicação, será que faz mesmo sentido ter multiplicado por 4 a taxa de encarceramento relacionada a delitos de drogas nos Estados Unidos e por 700 as despesas com o seu combate, sem qualquer alteração perceptível nos indicadores de consumo dessas substâncias? Ou contar com 40% dos detentos brasileiros em regime fechado condenados por tráfico de drogas (a grande maioria na condição de pequenos funcionários do negócio)? Ou mobilizar organizações policiais ou divisões militares inteiras para converter regiões de cidades ou países em verdadeiras praças de guerra em nome da reiteração sem fim dessa estratégia? São questões como essas que motivam um número crescente de observadores lúcidos a buscar um caminho alternativo. E a senha para ele também não chega a ser surpreendente: controlar, informar e reduzir danos, reconhecendo a existência do fenômeno social, é muito mais eficaz do que tentar eliminá-lo. E você não tem como controlar e regular algo que é ilegal.

Sabemos disso: usamos a alternativa da regulação e da informação para lidar com o álcool, tabaco, analgésicos, estimulantes, calmantes, antidepressivos e outros produtos cuja fronteira entre o uso benéfico ou recreativo e o abuso danoso está nas condições e nas doses com que são consumidos. Esta via se mostrou ao longo do tempo mais bem-sucedida tanto em relação à permissividade plena por muito tempo adotada para o álcool e o tabaco, quanto à proibição absoluta que impera até hoje para a maconha, a coca, os alucinógenos e outras substâncias ilícitas. Foi positivo reduzir a permissividade em relação ao tabaco e ao álcool, será positivo e realista ampliá-la em grau adequado em relação às drogas hoje criminalizadas.

E o caso é que esta correção de rumo não é apenas um componente secundário, de interesse específico de uma parcela reduzida da sociedade, representada pelos interessados em consumir legalmente esta ou aquela substância ou por liberais zelosos da autonomia individual. É, sim, um elemento central para a possibilidade de superar com sucesso alguns dos nossos principais problemas nos âmbitos da segurança e da saúde públicas. Não é de fato um exagero óbvio dizer que na perspectiva dessas duas áreas, a opção pela guerra às drogas é hoje de longe causa de mais problemas do que o consumo delas.

São recursos públicos mobilizados, vidas consumidas e estigmas ampliados demais para que se possa deixar de tratar a questão em nome de poupar-se de um debate público desgastante e controverso. Foi preciso substituir o objetivo primordial da erradicação do narcotráfico pelo do primado da vida e da liberdade de circulação para poder-se falar com consistência na pacificação das favelas do Rio de Janeiro. É preciso substituir a marginalização pela compreensão e oferta pública de apoio para a superação da dependência química de qualquer substância. Será preciso rever preconceitos e atitudes em relação às drogas ilícitas para conter o círculo vicioso perverso associado à sua proibição.

Por isso, talvez, é que a conversa franca sobre o assunto imponha-se aos poucos com a força que precisa ter. Com o passar do tempo, vai ficando claro que não haverá como avançar sem encará-la. Para isso, não é preciso concordar com tudo o que está dito acima. Basta ter abertura para a busca de soluções com base na observação serena de evidências e argumentos, e não em crenças ou temores pré-estabelecidos (sem que se saiba bem quando e por quem). De fato, uma injeção de sobriedade tem tudo para incidir saudavelmente sobre a nossa relação com as drogas.

8.3.10

freyre e demóstenes


Em causas de alta relevância e polarização, nunca foi fácil argumentar com matizes.

Mas nesta semana de debate das cotas raciais no Supremo Tribunal Federal, uma amiga me enviou o link com a notícia da exposição anticotas feita lá pelo senador Demóstenes Torres, acompanhado do comentário: "O Gilberto Freyre serve para sustentar esse tipo de argumentação. Ele não é só isso, claro. Mas é isso também. E não é pouca coisa ter o Demóstenes Torres evocando Gilberto Freyre para dizer que o estupro foi consensual e que a miscigenação no Brasil foi bonita."

Hoje Elio Gaspari e Miriam Leitão, na Folha e no Globo, reforçam o repúdio devido ao senador.

Não há o que comentar sobre a fala de Demóstenes e seu poder de síntese sobre os malabarismos mentais feitos por parte da elite brasileira para conviver com a própria má consciência. Nem é fácil divergir da amiga em questão (é uma amiga querida, de resto).

Mas a observação dos matizes necessários neste caso me impede de desconsiderar uma diferença primordial: eu acho sim que a miscigenação brasileira foi e é uma coisa bonita. Ou pelo menos, para formular em termos que permitam um acordo, que tem sua beleza a ser defendida.

Não preciso para isso negar o estupro, o racismo persistente e o fato da escravidão permanecer por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Apenas evitar a armadilha das generalizações binárias no calor do combate. E isso não por um capricho acadêmico ou literário, mas pelo valor que tem também para a história das relações humanas no Brasil.

O povo chocolate e mel da refavela de Gilberto Gil e a japonesa loura e a nordestina moura da São Paulo do Premeditando o Breque são um fato (e têm sua própria complexidade a exigir atenção, como nos lembra Mano Brown no trecho destacado no Consciência Mulata publicado abaixo). Como o são também o sincretismo cultural e religioso e os caboclos, cafuzos, mamelucos e mulatos ("pardos", na sintomática - pela sugestão de negatividade que contém - terminologia aglutinadora adotada pelo IBGE) espalhados por nossas vastas solidões.

A criação de um imaginário capaz de saudar esses fatos e acolhê-los como parte constituinte da nossa identidade em formação não foi simplesmente uma conspiração da elite branca para ocultar o passivo da escravidão e evitar o surgimento de uma consciência negra no país, mas também e principalmente uma construção histórica notável, em um momento em que o conceito de raças e o elogio da pureza racial ainda circulavam com desenvoltura no universo intelectual do ocidente. Não foi pouco nem gratuito ter sabido responder a isso com o ideal da mistura como fundamento do nosso próprio valor e singularidade.

Não foi e não é, em um momento em que o convívio com o diferente está longe de ser um problema resolvido naquele mesmo universo. Quando um chamado como "hoje tem festa no gueto / pode vir, pode chegar / misturando o mundo inteiro / vamos ver no que é que dá / tem gente de toda cor / tem raça de toda fé / guitarras de rock'n roll / batuques de candomblé" é festejado por multidões insuspeitas na variedade de cores e acolhido como música-tema nacional durante a Copa do Mundo (como aconteceu em 2002), há algo de valioso - e atualizado - a ser notado.

Mas talvez tudo isso aconteça porque havia também algo de preciso na narrativa do Brasil feita por Gilberto Freyre, entre outros. Narrativa que o texto de Elio Gaspari lincado acima me poupa da tarefa de livrar da acusação de negligenciar a brutalidade da escravidão. Mas cujo mérito está justamente em não se limitar a ela, e avançar na exploração da complexidade, ambiguidades e nuances da experiência brasileira. Pretender vinculá-la à sua apropriação indébita pelos Demóstenes Torres das nossas tribunas equivale ao sociólogo Demétrio Magnoli buscando associar o movimento negro ao nazismo, já que ambos lidam com a noção de raça. Nos dois casos, ativismos excessivos turvando a compreensão mais fina do que está em jogo.

E mais uma vez, o requisito de sutileza responde aqui a mais do que um mero preciosismo.

Porque na observação da complexidade e na defesa da evidência da mistura há de estar, como esteve antes, a dica para a formulação de uma saída original para o dilema da quitação da dívida histórica sem o apequenamento do "branco é branco, preto é preto" e da "one drop rule" que acompanham as políticas afirmativas no contexto norteamericano que as inspira. Padê em lugar de apartheid, encontro e entrelaçamento mais ainda que multiculturalismo, como sugere Antonio Risério.

Por sua vez, na desconstrução do paralelo vulgar de Magnoli, uma pista que pode talvez ajudar a colocar a conversa em termos mais adequados: o que está em debate não é uma questão racial, mas histórica. A justificativa para o benefício das políticas afirmativas aos negros e mestiços brasileiros não deriva da sua negritude em maior ou menor grau, mas do legado secular da escravidão. Ele sim segue presente como uma de nossas características nacionais (embora e felizmente talvez já não a única), e é o imperativo do seu banimento tardio que particulariza neste caso os grupos sociais em questão.

Tudo isso pode soar evidente, mas são detalhes que importam, e os rumos das leituras da semana fizeram sentir a necessidade de agregar o palpite. Para fazer isso, quero crer, é permitido repudiar os sofismas de Demóstenes e Magnoli sem precisar levar junto as visões policromáticas de um Gilberto, seja ele Freyre ou Gil, e de quem mais atender ao chamado do gueto, seja ele Pelourinho ou Capão Redondo. Inclusão nas universidades, empresas, governos e espaços de poder em geral pode e deve afinal de contas ter tudo a ver com mistura.

4.3.10

consciência mulata


Ainda Mano Brown na Rolling Stone:

De cor parda ("e raça negra"), Brown diz que os iguais a ele, mestiços, sofrem mais com o racismo do que os negros atualmente. Na visão dele, os pardos não usufruem do recente fortalecimento da autoestima do povo negro, que acontece há mais de uma década e engloba desde o sucesso dos Racionais até a eleição de Barack Obama. "No Brasil, você não vê gente da minha cor fazendo comercial, fazendo nada. Se eu não fosse o Mano Brown, seria invisível na rua." Há uma música sobre o tema pronta para o novo disco dos Racionais, não por acaso intitulada "O Homem Invisível".

Nas conversas com o negro Ice Blue, o assunto também surge. "Sou até muito mais discriminado do que o Blue. E os caras da minha cor, desse meu tom de pele, também. Você vê nas cadeias, na Febem. O cara tem medo hoje de discriminar um cara como o Blue, tem medo de falar um 'a' para um preto. Agora, um cara como eu, é toda hora, irmão. É pobre, tem cara de pobre, tem cor de pobre. Se quiser, fala que é 'moreninho'. Tenho um biótipo de ladrão. É um lance do brasileiro. Quando a escravidão estava para ser abolida, tinha muitos filhos de branco com preto nas ruas, abandonados, que não eram nem um nem outro, e foram virar ladrão mesmo. A primeira classe de gente abandonada foi a dos filhos de branco com negro, o filho rejeitado do patrão. Foram os primeiros vagabundos, que não serviam nem para um nem para outro, nem para escravo nem para senhor. É uma teoria pequena minha, não é a regra."

1.3.10

timing



Só a música, sem nenhuma sugestão político-eleitoral ao companheiro Serra: http://bit.ly/aUIyiu.

23.2.10

fim da canção


Fim da canção é um mote sedutor. Tem a atração acolhedora de toda melancolia.

Termino de ler o ensaio de Fernando de Barros e Silva, na revista Serrote, sobre o assunto.

Como todos antes dele, ele persegue a lebre levantada por Chico Buarque no final de 2004 (em entrevista ao próprio Barros e Silva): "Assim como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. [...] Quando você vê um fenômeno como o rap, talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou."

O texto é bom, repleto de insights e referências instigantes. A tese é simples: a proposta de Chico não pode ser tomada ao pé da letra, ou da partitura, mas sim em seu conteúdo simbólico. A canção, é claro, continua a existir, apenas com menor originalidade e centralidade (como a ópera, sempre se poderia dizer). Não vem ao caso discutir isso. O fim que conta é o do mito/projeto dela como expressão refinada de uma identidade comum do povo brasileiro.

E conta mais, propõe Fernando, pelo que revela dos caminhos do Brasil de hoje: "Se essa discussão vai além de um cabo de guerra tolo entre especialistas, para tocar, como sugerimos, em um nervo sensível da cultura, é também porque ela transborda por todos os lados e exprime uma dúvida de fundo a respeito do momento histórico atual."

O fim do mito da canção seria o correspondente estético do esgotamento de seu projeto político. Fala José Miguel Wisnik: "No Brasil, a possibilidade de haver música popular difundida em grande quantidade e com extraordinária qualidade ligou-se ao mesmo tempo ao horizonte de uma modernização progressista do país." Este horizonte, diz Barros e Silva, é que teria sumido junto com a canção do nosso campo de visão.

Não é pouca coisa. E alguém poderia sugerir que é projeção demais para um pobre violão (tanta expectativa em torno da música popular faz pensar no Fitzcarraldo de Werner Herzog, empenhado em levar ópera Amazônia adentro). Mas é justo também: a canção popular no Brasil guarda a marca profunda de um tempo (ou de um século, como propõe Chico), e um tempo em que todos souberam cantar "Chega de Saudade" tem sua beleza a ser velada.

Só que Fernando de Barros vai além. Logo depois de alertar que o mito/projeto em questão nunca foi muito mais do que das classes médias letradas dos centros urbanos, trai-se na constatação de um "rebaixamento brutal do gosto" e uma "regressão da audição" no Brasil de hoje, por conta da hegemonia de gêneros como o neosertanejo, o axé ou o pagode (e é sintomático que não lhe ocorra então falar em funk, brega ou forró eletrônico). Recorre a uma excelente oposição proposta por Marcelo Coelho entre "Gente Humilde" ("e eu que não creio, peço a Deus por minha gente, é gente humilde, que vontade de chorar"), de 1969, e "Subúrbio" ("lá não tem claro-escuro, a luz é dura, a chapa é quente, que futuro tem aquela gente toda), de 2006, para enxergar aí um Chico Buarque, como aquelas mesmas classes médias letradas, inquieto diante da afirmação regressiva de linguagens e poderes periféricos.

Nesta leitura, o "fala Penha, fala Irajá, fala Encantando, Bangu, fala Realengo" de "Subúrbio" seria antes uma rendição do que uma saudação. O "evoé, jovens à vista" de "Paratodos", em 1993, não teria sido bem para esses jovens (os da "língua do rap"). E Chico estaria então "exilado dentro de casa" - a canção, o Rio de Janeiro, o Brasil.

Não é o caso de disputar com Barros e Silva a primazia da interpretação de Chico Buarque (o mesmo de "Carioca" e "Baioque"). Mas talvez seja o de propor que cada um fale por si.

Chico em 2004 apenas cantava a bola da década de Lula, das periferias emergentes e do "agora por eles mesmos". E o fazia com a grandeza e generosidade habituais, sem em nenhum momento pedir que não se altere o samba tanto assim. Não é a ele portanto que qualquer saudosismo deve ser imputado.

Já eu, por exemplo, escrevo tudo isso sem conseguir deixar de pensar na "Lapa" de "Guinga e Pedro Sá", "Lula e FH", cantada por Caetano ainda no ano passado. Ou em Mano Brown reverenciando "Construção" na Rolling Stone. No êxito não-tutelado dos dois filhos de Francisco, de Chimbinha e Joelma, Marlboro e Márcio Victor (e de Lula também, por que não?). Em Marina Silva e MV Bill advogando educação de qualidade.

As imagens poderiam multiplicar-se, até bem além dos limites do "nosso samba" de "Feitiço", que já em 2002 tinha "mangue beat, berimbau, hip-hop, Vigário Geral, Capão Redondo e Candeal". E funk. Imagens todas, creio eu, da mesma década antevista por Chico e que escapam sugestivamente ao radar de Barros e Silva.

Não ignoro, é claro, as acusações de complacência que sua invocação pode despertar. Nem o muito por avaliar na distância entre o país, a "nova classe média" e a musicalidade que resultam daí e os roteiros de progresso e inclusão traçados pela canção. Mas gosto de refletir sobre a oposição entre as repetições insistentes de "tem" em "Feitiço" e de "não tem" em "Subúrbio". E vejo inícios (ou continuações) demais em tudo isso para satisfazer-me com o "fim de linha histórico" a que Fernando de Barros chega no final de seu ensaio.

Tem mais samba o perdão que a despedida. Diante de um texto tão genuinamente belo como o de Barros e Silva, não serei eu a reivindicar a massa afinal comendo o fino biscoito que fabricamos. No fundo, a motivação fundamental desse artigo é apenas a de não poder deixar de notar os riscos de excessos no trato tanto com mitos, quanto com contramitos. Ao apontar a mistificação contida nas expectativas das classes médias letradas em relação à canção, Fernando de Barros lembra como elas "muitas vezes, inclusive no período em questão, confundiram suas aspirações (e ilusões) com os interesses nacionais". Talvez seja preciso cuidado para não fazer o mesmo com as desilusões.

 
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