17.5.10

depois da pacificação


Na adoção de políticas públicas, como em quase tudo na vida, a definição correta de objetivos é fator chave para o sucesso ou fracasso.

O Rio de Janeiro passou anos sem conseguir decidir os seus em relação às favelas, e especialmente à insegurança e ao domínio das armas dentro delas. Opunham-se de forma irremediável a demofobia secular incapaz de enxergar cidadania em áreas pobres e preocupada exclusivamente em contê-las, e a idealização das comunidades tomando a presença da lei estatal como intrusa ou ameaçadora naquele contexto. Tempos do "favela como caso de polícia" rebatido pelo "polícia para quem precisa de polícia".

O significado das UPPs é antes de tudo o de um formidável passo à frente em relação a este impasse. Sua premissa fundamental é tão óbvia quanto libertadora para os dilemas cariocas: não se trata de prover segurança contra as favelas, mas para elas e seus moradores, como em todas as áreas da cidade. A partir daí seguem-se os desdobramentos implícitos que vão aos poucos ganhando a hegemonia no imaginário comum: favelas, evidentemente, fazem parte do conjunto "áreas da cidade" e por isso devem merecer a atenção prioritária do poder público com essa perspectiva. Sendo assim, o objetivo primordial da política de segurança precisa ser a garantia do controle do território pelo Estado democrático, com a extensão universal das liberdades e direitos que decorrem daí. E para isso, a presença de uma polícia capaz, confiável e cidadã é ponto de partida, como condição mesmo para que outros mecanismos de desenvolvimento e inclusão se estabeleçam e proliferem.

Simples assim, mas é desses simples que tomam anos para amadurecer. Não é, claro, a primeira vez que tudo isso é proposto ou mesmo tentado. Mas é a primeira vez que alcança a sustentação necessária para avançar: na Zona Sul como nos morros, nas polícias como na sociedade civil, na mídia como na opinião pública. Objetivos redefinidos. E com eles salta aos olhos, de forma para muitos surpreendente, o quanto a força inexpugnável das redes de traficantes e milicianos armados nunca esteve de fato no seu poder de fogo, mas sim na lacuna criada pela nossa própria impossibilidade de definir um rumo compartilhado. Resta portanto, do ponto de vista da segurança pública, guardar a direção e mantê-la firme.

Mas o ponto de vista da segurança pública é, neste caso, naturalmente apenas mais um. "Ponto de partida", como indicado acima, para o ciclo renovado de desenvolvimento e inclusão por ter em vista. Uma só cidade. A boa nova é que são muitos os indícios de que esta visão vai também impondo-se, resultando da mesma convergência virtuosa que permitiu o acordo em torno dos objetivos da pacificação.

É notável, e mais ainda no cenário de fragmentação que historicamente caracterizou a vida pública carioca, a sintonia presente entre setores variados dos três níveis de governo, associações e lideranças privadas, vozes acadêmicas e da sociedade civil e organizações e moradores das comunidades em foco em relação às metas comuns de eliminação do arbítrio criminoso no Rio e integração plena das áreas libertadas ao tecido da cidade. Há, é claro, espaço nisso para críticas, dúvidas, ressalvas e acompanhamento atento, como é natural e positivo. Mas o que sobressai é mais uma vez a definição compartilhada de objetivos, permitindo vislumbrar uma soma igualmente positiva de esforços na direção dos passos seguintes. Vão aqui, como exemplo, alguns links ilustrando tanto a constatação como a expectativa.

Talvez o principal aspecto por atentar agora seja que movimentos assim levam tempo. Para usar o termo em voga, a pacificação é marco que inverte o sentido da roda. Insegurança e violência minam coesão e ação coletiva, segurança e paz fazem o contrário. Mas aqui vale o lugar comum de que 30 anos (ou mais de 100, para quem considera o histórico completo de abandono das favelas cariocas pela cidade/sociedade formal) girando errado não se desfazem em dois tempos.

Reintegrados os territórios, é preciso caminhar na dissolução das muitas dimensões de ilegalidade ou informalidade (relacionais, urbanísticas, econômicas) que marcam o seu cotidiano - um desafio, de resto, de toda a cidade, ainda que com graus e conteúdos específicos variáveis. Algo por fazer de forma gradual e com sensibilidade às particularidades de cada local, mas necessário. É preciso fazer a lição de casa, de novo tão óbvia quanto renovadora, de universalizar o acesso aos serviços urbanos e sociais básicos (infra-estrutura, educação, saúde, trabalho e renda). Encontrar os caminhos para tornar dinâmico e sustentável o desenvolvimento deflagrado.

Tudo isso tampouco é novidade, e talvez possa também ser já incluído entre os consensos. Mas é tarefa para muito caminhar, diálogos e formulação, tentativas e aprendizados. Depois da pacificação, o desafio é portanto manter o impulso da roda para impedir que a resistência natural dos fatores de exclusão e degradação que seguem existindo volte a impor sua inércia corrosiva no percurso.

O que leva a um último, mas certamente não menos importante, item para a agenda. Processos duradouros de avanço público pressupõem instâncias eficazes de interlocução também compartilhadas. Como é natural, durante anos as áreas pobres do Rio viram também seus espaços associativos e sua interface com o poder público desgastarem-se na mesma medida do isolamento imposto pelas armas. Associações e grupos locais foram capturados ou fragilizados pelo tráfico ou por milícias, as oportunidades de colaboração com outros segmentos sociais foram limitadas pelas fronteiras criadas, a relação com o poder público deteriorou-se ainda mais em clientelismo - quando não em extorsão e intimidação determinadas pela presença cotidiana da face corrompida do Estado. Isso tampouco se desfaz da noite para o dia, e sem que seja desfeito será difícil contar com lastro suficiente para eliminar de vez o risco de nova inversão negativa da roda.

Recriar espaços vibrantes e qualificados de participação e cooperação será então componente igualmente decisivo para o que há por vir. Multiplicação de oportunidades de convívio diverso nas áreas em foco (via cultura, esporte, lazer, além de participação cidadã), associações e redes locais renovados, conselhos e novas formas criativas para a interação com o poder público e a colaboração com outros segmentos sociais, recuperação dos pontos de contato com os parlamentos (Câmara Municipal e Assembléia Legislativa) e inovação na ação dos meios de comunicação em relação a essas áreas (e vice-versa) são partes integrantes possíveis deste esforço. Elas e outras que venham a ser criadas no caminho. É daí, quem sabe, que pode vir a superação definitiva dos paternalismos, desconfianças e incompreensões que tradicionalmente comprometem as vias de identidade e encontros na cidade partida, e é por isso que o tópico tanto fecha quanto impulsiona a pauta.

Avançamos notavelmente nos últimos tempos do "quem precisa de polícia" para o "de que polícia precisamos". E para o entendimento de que todos precisamos de boa polícia - a mesma para todos. Não é pouco. Agora é tempo de alcançar o que precisamos além dela. É bem mais, certamente, mas o caminho está positivamente aberto, e são muitos os sinais de que pela primeira vez em muito tempo há boas razões para apostar nele.

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