2.6.10

um rio


O Rio é uma cidade partida. O Rio é uma cidade de cidades misturadas. O Rio é uma cidade única em que as duas afirmações podem paradoxalmente conviver com o mesmo grau de verdade. Ou, para falar com Caetano Veloso, tomando emprestada uma descrição que ele propõe para o Brasil, "com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei, entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime".

O problema é que tendo sido sempre assim, o Rio se acostumou, e a cidade foi tomando a forma dessas divisões. A crença difusa de que a delícia e o sublime da cidade poderiam sobrepor-se a tudo permitiu conviver por tempo demais com desigualdades e descuidos intoleráveis. A multiplicação de fronteiras, embalada pelo declínio econômico e pela expansão das armas, impôs-se minando a vocação para o encontro. "Favela" e "asfalto" converteram-se na imagem síntese de uma cidade que tinha - tem - tudo para ser muito mais plural e bela do que isso.

Na última quarta-feira o AfroReggae inaugurou em Vigário Geral o Centro Cultural Waly Salomão. Batizado em homenagem ao poeta falecido em 2003 e que ao lado de Caetano e de Regina Casé esteve entre os padrinhos de primeira hora do grupo, o centro é fruto de quase uma década de construção, avançando um passo após o outro pelos meandros da captação de recursos e da mobilização de parceiros, desde o lançamento das fundações em 2002 (que precisaram ser profundas, por estarem, como todo o bairro, localizadas sobre uma área aterrada) até os quatro andares de hoje e a praça, também nova, que os circula. O resultado é um espaço de criação e produção artísticas que não deve nada a nenhum outro da cidade, em infraestrutura, equipamentos e excelência, e que passará a abrigar as atividades de música, teatro e dança do grupo e outras tantas - culturais e cidadãs - que certamente surgirão com os muitos encontros proporcionados pela nova casa.

Mas se já é inspirador por sua qualidade e pelo cotidiano que abrigará, o CCWS estimula também pelo que guarda de história e de sentidos. Foi este mesmo Vigário Geral, notabilizado pela chacina que o tempo não permite esquecer (e é bom que seja assim), que motivou Zuenir Ventura a cunhar a expressão "cidade partida", em um 1994 tão distante quanto presente na persistência dos dilemas vividos pelo Rio. De lá pra cá, a história foi contada cada vez mais por novos movimentos surgidos nas áreas da cidade em que estes dilemas se vivem de forma mais presente. Com vigor e originalidade admiráveis, grupos como o próprio AfroReggae, a CUFA, o Observatório de Favelas, o Nós do Morro - para exemplificar aqui com apenas os mais conhecidos, reunidos desde 2007 na aliança "Favela a Quatro" - surgiram e espalharam-se cidade afora, lançando pontes, abrindo canais de transformação e assumindo a responsabilidade de renovar forças e apontar caminhos diante da violência e da exclusão enraizadas.

Pouco a pouco, assumiram também o protagonismo em uma esfera pública que sempre lhes negou voz, mais ainda em primeira pessoa. Não é casual que o novo centro chegue quase ao mesmo tempo que a nova versão do "Cinco Vezes Favela", marco do cinema brasileiro na década de 60, que acaba de ganhar uma atualização, dirigida agora por jovens cineastas residentes em favelas. E não é exagero propor que nesses movimentos estão concentradas hoje a substância e a energia vitais para a reversão das divisões apontadas no início do texto. Recuperar a vocação do encontro para desfazer fronteiras. Vislumbrar um horizonte - e uma agenda pública - de integração, mais ainda do que de mistura.

Construído - ou conquistado - ao longo dos anos juntamente com essa história, o novo centro surge assim como um verdadeiro marco urbano de seu significado. Porque símbolos importam, e este é um símbolo que importa muito, um contraponto oportuno à Cidade da Música na demonstração do que a vitalidade criativa e associativa do Rio é capaz de produzir. É belo e estimulante que seja Vigário a recebê-lo, porque não poderia ser mais marcante a evidência da capacidade de recuperação da cidade mesmo diante dos seus reveses mais profundos.

Por isso é que os integrantes do AfroReggae gostam de dizer que este Centro Waly Salomão não é um centro cultural de Vigário Geral, mas um centro cultural da cidade do Rio de Janeiro, em Vigário Geral. Um espaço concebido e projetado para isso, pronto para receber os moradores de toda a cidade. E para assim projetar adiante o sentido de ambição coletiva que permitiu concretizá-lo: como todo bom espaço urbano e público pleno de significado, irradiando de sua história e de seu dia-a-dia a visão e os enlaces necessários para os passos adiante por cumprir em convívio e igualdade.

É dessa visão e das possibilidades de realizá-la que eles nos falam quando entregam o novo centro para o Rio. Como se dissessem, pela via da expressão cultural que ele abrigará: a gente quer comida, diversão, arte, direitos e oportunidades - cidade inteira, e não pela metade. Ou, em uma conversão de palavras/sentidos que Waly haveria de aprovar, cidade afinal repartida, compartilhada.


Um comentário:

  1. Lindo texto, José. Dá ânimo pensar que processos como esse possam estar ocorrendo, também, em tantos outros cantos do Brasil --inclusive nesta São Paulo, tão longe e tão próxima do Rio.

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